BITCOIN: UMA TECNOLOGIA DE SI
O autor do artigo não endossa todas as ideias do filósofo Michel Foucault, apenas trouxe um insight que achou interessante em dado momento e não quis deixar despercebido.
O Bitcoin é só um código. E encarando-o sob uma esfera estritamente lógico-matemática, ele é neutro e inerte. Todavia, no escopo da vida humana estamos constantemente lidando com todos os aspectos modais. Sendo assim, nada nos proíbe de analisar o Bitcoin em relação à forma como ele desafia as estruturas de vigilância e controle presentes na sociedade.
O conceito de panopticismo refere-se a um sistema de poder que opera por meio da vigilância constante, onde os indivíduos são levados a internalizar normas e disciplinas para se adequarem às expectativas sociais.
No caso do Bitcoin, a descentralização e a criptografia permitem algum nível de anonimato e privacidade nas comunicações, contrastando com as estruturas tradicionais de vigilância financeira, das instituições financeiras e governamentais que rastreiam e monitoram as atividades dos indivíduos.
O panopticismo pressupõe a culpa de todos. A privacidade é culpabilizada. "Quem não deve, não teme, portanto entregue tudo o que tens". A constante sensação de ser observado, é desafiada paradoxalmente por uma rede que é pública, transparente e aberta, PORÉM, pseudônima e embaralhável: o Bitcoin.
O Bitcoin cria uma dinâmica em que os indivíduos não são mais submetidos a um olhar onipresente e disciplinador, fornecendo um ambiente em que cada um pode exercer total controle e domínio sobre suas transações e informações. Essa liberdade proporcionada pelo Bitcoin perturba o funcionamento do panopticismo, pois os indivíduos não são mais compelidos a se conformar com as normas impostas pela vigilância do mundo fiat.
O Bitcoin, no longo prazo, inutiliza a função de um estado soberano e monopolista em relação à esfera econômica, sobretudo no tocante ao controle monetário. O Bitcoin desafia a biopolítica fiduciária, já que a mesma possui uma estratégia de poder que visa regular, controlar e disciplinar a vida dos indivíduos e das populações em um nível macro e micro. Isso inclui o controle sobre os processos econômicos e a distribuição de riqueza.
A biopolítica fiduciária é o poder que regula e governa corpos e populações, estabelecendo normas, disciplinas e estratégias de controle. Nesse sentido, o Bitcoin é uma forma de resistência e subversão às técnicas biopolíticas.
O Bitcoin subverte a biopolítica e inutiliza o monstro panóptico por ser uma tecnologia de si.
"A tecnologia de si envolve a exploração das possibilidades de liberdade que são inerentes à existência de um indivíduo".
- Michel Foucault¹
A tecnologia de si é conjunto de práticas e técnicas que permitem aos indivíduos moldarem e transformarem a si mesmos, a fim de alcançarem uma existência mais autêntica e livre. Essa tecnologia provocam um processo de autorreflexão e autotransformação que visa a libertação individual dos grilhões externos.
O livro "21 Lições: O que aprendi ao cair na toca do coelho do Bitcoin"² entra em detalhes no conceito de tecnologia de si ao explicar que o Bitcoin não muda, mas é capaz de mudar a mente humana. Processos dopaminérgicos e serotoninérgicos, ciclos circadianos, alimentação, exercícios físicos e afins são todos influenciados e influenciadores da nossa preferência temporal.
Sem baixa preferência temporal não há construção de longo prazo para uma vida, uma família e uma sociedade. Se "o custo de oportunidade de tudo é o Bitcoin"³ (Caio Leta, 2022), então não há motivos para o hedonismo, o desperdício e uma alta preferência temporal - que leva ao descuido de si, do mundo ao redor e do próximo. Deixamos de ter uma mentalidade parasítica e passageira e passamos a ter uma mentalidade construtora e duradoura.
Como afirma Foucault, "A tecnologia de si é, assim, um processo que leva o indivíduo a se modificar, a se compreender, a conhecer-se melhor em relação a si mesmo e aos outros e a melhorar sua própria existência". Nesse sentido, o Bitcoin permite mais do que a possibilidade de auto-custódia de seus ativos de forma inconfiscável. O Bitcoin permite a cessação de um estado mental de limitação intelectual (um estado mental que exporta a fiduciarização para todos os âmbitos do ser). O "não confie, verifique" se expande para além do universo dos códigos e da criptografia, se aplicando em relação ao eu, ao ser e ao entender a si próprio e aos outros. Nesse sentido, nenhum âmbito do ser fica incólume quando confrontado por esse crivo.
Portanto, o processo de compreender e entender o Bitcoin implica em uma disciplina específica, uma disciplina que pode ser vista como uma forma de controle sobre si mesmo, em que o indivíduo se submete a práticas específicas para garantir ativamente que está atento aos detalhes mais possivelmente microgerenciáveis de sua vida.
"A tecnologia de si envolve a exploração das possibilidades de liberdade que são inerentes à existência de um indivíduo".
- Michel Foucault
A liberdade absoluta implica em responsabilidade absoluta, sendo assim, a intensificação do processo de responsabilização e verificação de tudo com o quê se interage, traz maturidade para o ser que tem sido constantemente infantilizado pela grande creche que é a sociedade fiduciária.